- Avó, estás contente?
- Se estou! Acabei de acordar e já estás nos meus braços. Vejo nos teus olhos que acordaste feliz.
- Acordo sempre! Gosto de dormir no mimo dos papás e depois brinco toda a manhã. Adoro quando a mamã canta, gosto que falem comigo. Olha, é bom o teu colo quentinho. Contas-me uma história?
Ainda és pequenino e podes não entender.
Conta, depois contas outro dia, um dia eu percebo. Não é?
- Ok. Vamos a isso!
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Palavra de rei tem que voltar atrás!
Era uma vez, uma princesa muito boazinha, que casou com um lindo príncipe. A princesa, passava o dia a tratar de velhinhos e crianças doentinhas e era feliz com o que fazia. O seu príncipe cuidava para que nada faltasse no seu pequenino palácio e preocupava-se com tudo o que acontecia no reino.
Sem que o povo suspeitasse, os nobres conselheiros do rei andaram a roubar todas as riquezas do reino gastando-as em grandes carruagens, festas e fatiotas. Para que ninguém descobrisse a verdade, autorizaram os agiotas a emprestar dinheiro a juros muito pequenos a todas as pessoas, mesmo àquelas que tinham poucos rendimentos. Quase todos aproveitaram para comprar a sua casinha e para dar mais conforto aos filhos embora também houvesse quem tivesse aproveitado esses empréstimos para passeios e festanças.
Um dia porém, acabaram as riquezas do reino mas os nobres endinheirados e vaidosos não se importaram e, gananciosos como eram, aconselharam o rei a pedir ouro emprestado aos reinos vizinhos.
O povo andava contente pois nunca se tinha visto tanta fartura de tudo. As crianças eram saudáveis e felizes pois as mesas passaram a ser fartas e no Natal o sapatinho de todos aparecia bem recheado.
O rei e toda a sua corte eram o orgulho do povo. Tinham finalmente conseguido ter um reino de gente feliz, livre e com trabalho. Todos iam à escola e nos hospitais os doentes eram atendidos com muito carinho sem que ninguém tivesse que pagar nada.
Em todas as casas se contava a história desse rei que num lindo dia de Abril tinha sido coroado para alegria de todos.
Ninguém reparou que era o monarca mais bem vestido do mundo. Ninguém se espantou quando se soube que a rainha-mãe tinha agora palácios majestosos e toda a família real vivia faustosamente. O rei gostava que toda a sua corte vivesse muito bem sem pensar que para isso se gastava o ouro que vinha do estrangeiro.
Os anos foram passando mas, como a mentira tem perna curta, certo dia, nos reinos vizinhos alguém exclamou:
- Se eles vivem tão bem para que precisam de pedir ouro todos os anos?
Rapidamente descobriram que esse reino devia ouro a todos os reinos da vizinhança e preocupados trataram de exigir o pagamento dos empréstimos. Mal isto se soube, todos os outros soberanos reclamaram o pagamento das dívidas.
Atarantados os burlões obrigaram o povo a pagar impostos cada vez maiores mas continuaram a viver à larga. Como mais ninguém lhes emprestou nada trataram de extorquir ao povo todos os tostões. Baixaram os salários, despediram muitos dos aldeões que trabalhavam nas propriedades dos nobres ou deixaram de pagar aos populares que lhe forneciam bens. Os cobradores de impostos passaram a controlar tudo e todos.
Os agiotas exigiram o dinheiro que tinham emprestado e quando alguém não conseguia pagar-lhes ficavam-lhe com a casa, com os cavalos, com o gado ou mesmo com as pequenas propriedades. O povo desesperado perdeu muitos empregos e bens sem poder fazer nada.
Para que o povo se acalmasse os burlões mandavam emissários a todas as terras do reino para convencer as pessoas que tudo se resolveria. Continuaram porém na sua vidinha, sem misericórdia pelos tristes aldeões que agora viam os seus filhos sem trabalho, sem casa e sem meios de sobrevivência. A pobreza começou a bater à porta da maioria das famílias.
Depois de muito conferenciarem os outros reinos decidiram enviar um grupo de pessoas, da sua confiança, para exigir que se governasse o reino segundo a sua vontade. Queriam recuperar o seu ouro. A partir daí todos tiveram que obedecer às ordens dos reis vizinhos. Tinham que trabalhar mais e receber menos.
O rei, que gostava de continuar livre, levou toda fortuna que tinha amealhado e mudou-se para outro reino onde o lema de vida era “liberdade, fraternidade e igualdade”.
Quando lá chegou, instalou-se e exclamou:
- Na, era o que faltava! Podia lá continuar a trabalhar para aqueles ingratos! Eu dediquei-lhes a minha vida. Agora chega! Vou viver regalado daqui para a frente. E foi feliz para sempre pois, no meio da aflição e afogado em problemas, o povo só pensava em sobreviver.
Os outros cortesãos depressa desejaram poder governar o reino e apesar das intrigas e invejas continuaram a governar, obedecendo aos reis vizinhos, mas procurando manter sempre os privilégios que já tinham. O reino estava cada dia mais pobre e a divida, crescia.
O povo esperançado ia ouvindo os discursos dos condes, dos viscondes, dos duques, dos barões, dos cavaleiros e até do clero. Depressa concluiu que não se entendiam, mas que se governavam bem. Descobriram também que os cortesãos só receavam a rainha Angélica que apesar do nome, era temida por todos embora fosse baixinha e roliça. As suas palavras eram ouvidas como ordens e transformavam-se em lei. Claro que Angélica não se esquecia que este reino tinha sido caloteiro e tratava todos como tal.Já visitava o reino como se fosse dela.
Chegou a coisa a ponto dos cortesãos pensarem em fazer os populares pagar uma parte da sua féria para ajudar o senhor para quem trabalhavam, chamaram a isso TSU. O povo abriu a boca de espanto e começou a murmurar pelas ruas:
- Então agora vamos pagar também ao patrão? Não se pode aguentar! Vamos todos ao palácio. Não pagamos! Não pagamos! Está decidido!
A notícia do protesto passou de boca em boca como um relâmpago.
Até a princesa, o príncipe e todos os que eram honestos, estavam de acordo e resolveram ir também protestar para a frente do palácio real.
Num lindo dia de Setembro os mandões do reino viram aterrorizados, uma enorme multidão que se concentrava, em protesto, mesmo em frente do palácio. A multidão cresceu até já não haver nenhum espaço nas ruas e passeios em volta do palácio.
- Não é seguro sair daqui, podem fazer-nos mal! diziam uns.
- São tantos, parecem furiosos! resmungavam outros.
- Não se atreverão a fazer-nos mal! garantiam uns poucos.
-Será? Podem irritar-se! dizia a maioria.
As horas foram passando e de todas as cidades do reino chegavam mensageiros com esta notícia horrenda:
- Saibam vossas senhorias que os que não puderam estar aqui, estão a protestar, tal como estes, em todas as aldeias, vilas e cidades do reino.
- O quê? Ainda há mais do que estes? E estão irritados? perguntaram os governantes do reino assustadíssimos.
- Podemos garantir que poucos são os que estão em casa ou a trabalhar. Não há quem esteja contente no reino! garantiam os mensageiros.
- Senhores, vamos reunir de emergência. Há que tomar medidas! A nossa segurança está em causa! exclamavam os mais medrosos temendo que o povo perdesse o medo e avançasse.
E, se bem o pensaram melhor o fizeram. No dia seguinte anunciaram por todo o reino que tinham percebido o seu povo e a tal proposta de lei, seria anulada. Todos respiraram de alívio.
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- E depois avó?
- Depois, depois acabou a história.
-Mas avó, os malandros devolveram o ouro? Conta como acabou tudo.
- Não, não devolveram. Para te dizer a verdade ficou tudo na mesma. O povo voltou para casa e para a vida aflita em que viviam. Pouco tempo depois até aumentaram os impostos, e pagavam bastante menos a quem trabalhava. Muitos voltaram com os filhos para casa dos pais.Em todas as terras passou a haver sopa para os pobres e pessoas que dormiam na rua.
- Avó, esta história é muito tonta!
- Tonta? Ora essa. As histórias são como são.
- Até eu, que sou pequenino e não sei falar com palavras mas posso ouvir-te e falar-te com o coração, sei o que fazer para resolver os meus problemas.
- Ai sim? Então dá lá uma ideia.
- Olha, já reparaste que eu quando quero qualquer coisa, consigo sempre?
- Já, já reparei.
- É fácil. Primeiro palro um pouco. Se ninguém vier ajudar, choro. Se demorarem, grito e se mesmo assim não descobrirem o que quero é aquela gritaria que já conheces. É remédio santo! Vem a mamã ver a fralda. Se estiver seca dá-me mama. Se não for fome deita-me, pois pode ser sono. Enquanto não me calar, ela experimenta tudo. Se o papá estiver em casa, acodem os dois. Se estiveres tu, acodem os três. Se estiverem os outros avós acontece o mesmo. Diz lá se não é infalível?
-Realmente, é assim que acontece. Então achas que o remédio é chorar? Olha que nesse reino devia haver muito quem tivesse vontade de o fazer.
- Nem era preciso. Se eu vivesse nesse reino dizia a todos que deviam voltar ao palácio. Mas todos, mesmo todos. Isso de ficarem a protestar cada um na sua terra não. Se esses mariolas vissem chegar todos, novos, velhos, doentes, crianças, famílias inteiras vindas de todo reino, percebiam que eram milhões. Se chegassem a pé, de carroça, a cavalo ou de burro até entupir todos os caminhos que vão dar ao Palácio, os malvados ficariam realmente apavorados e não voltariam a pensar senão em pagar o ouro e o povo deixava de prestar vassalagem a outros reinos mais depressa. Até a rainha Angélica passaria a admirar esse povo tão corajoso.
- Pois, tens razão. Vamos lá experimentar terminar a história com a tua ideia.
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O tempo foi passando e o povo foi esmorecendo. Por todo o reino os cobradores de impostos infernizavam a vida da população. Nada lhes escapava. Logo que alguém recebesse algum tostão lá estavam os cobradores a exigirem a quarta parte de tudo. Por vezes até exigiam que se pagasse por conta dos negócios que se iriam ainda realizar.
Certo dia, numa choupana onde vivia uma família muito pobre com dez filhos, o pai chegou e explicou que nesse dia não haveria ceia porque mal tinha vendido o milho que tinham colhido, teve que entregar todo o dinheiro ao cobrador de impostos que afirmava que essa seria a quantia a pagar de impostos, nesse ano. Dessa forma nem tinha podido comprar um pedaço de farinha para cozer pão.
Em volta do borralho todos ficaram quietos em silêncio. Ninguém se atrevia a dizer nada. Olhavam fixamente para as brasas que lhes forneciam ainda algum calor. De repente, o João, o mais pequenito que já com seis anos, parecia dormitar ao colo da sua mãe, perguntou:
- Se um dos nossos vizinhos cá viesse, todos os dias, roubar um pedaço do carvão que fizemos com a lenha que trouxemos com tanto trabalho da floresta, devíamos deixá-lo continuar a roubar até não termos mais carvão?
- Claro que não, respondeu indignado o irmão mais velho.
Depois de alguns minutos o João retorquiu:
- Então o que fazias tu?
- Punha-me de guarda e mal o apanhasse dava – lhe com uma tranca na cabeça.
- E matavas o vizinho por causa de um pedaço de carvão? Tem juízo filho! disse a mãe pacientemente.
- Pois! Mas tinha que o impedir de roubar o resto do nosso carvão. Além de fome ainda íamos também passar frio? Tinha que fazer alguma coisa! exclamou o mais velho.
- Eu ajudava, acrescentou outro dos rapazes. - Nós os dois agarrávamo-lo e corríamos com ele.
- Eu também ajudava, disse em voz baixa uma das raparigas, e acrescentou: - Nós somos doze, temos vinte e quatro braços. Claro que podíamos pô-lo lá fora sem o magoar.
- A união faz a força,disse outra criança.
Depois de um grande silêncio o João voltou a dizer:
- Pois, um só cobrador de impostos rouba tudo a toda a gente da aldeia e ninguém o agarra. Na nossa aldeia, quantos braços haverá papá?
O pai muito sério não respondeu e todos acabaram por se deitar em silêncio.
Nessa noite, o pai não se deitou. Ficou a matutar na conversa dos filhos. Lembrava-se de um ditado antigo" Quem não governa a lenha, não governa casa que tenha".Afinal, quantos braços haveriam na aldeia? pensou.
Mal o sol despontou no horizonte já o pai esperava pelo vizinho José que haveria de sair com o gado para o pasto. Puxou conversa e contou-lhe a da noite anterior.
- Olhe que o seu cachopo tem razão, mas não pensou que o pobre do cobrador de impostos não fica com um tostão nosso. Ele é tão pobre como nós. Olhe, ali vai ele! disse o senhor José enquanto compunha a boina na cabeça.
- Bom dia, cumprimentou o cobrador, baixando os olhos enquanto passava.
- Bom dia? exclamou o pai indignado, e acrescentou:
-A ceia da sua família estava boa, ontem à noite? Compadre ouve-se cada coisa!
O cobrador empalideceu e parou. Levantou o olhar e disse:
- Os meus filhos tiveram sopa e pão para a ceia mas eu, não consegui saboreá-la. Não me saiu da cabeça o imposto que pagou ontem, senhor António. Não preguei olho a noite inteira! É urgente fazer alguma coisa! Mas o quê? Vou ser despedido se não cobrar os impostos e serei despedido quando não houver mais nada que se possa cobrar. De uma forma ou outra espera-nos a miséria!
Os três homens calaram-se até que o senhor José disse:
- Eu já decidi. Não vou agora com o gado para o pasto. Esperem um pouco. Vou mandar um dos meus gaiatos levar o gado e nós vamos reunir os homens da aldeia. Agora que ainda estão em casa. Avisem todos, reunimos no adro da igreja. Combinado?
E assim foi. Nessa reunião apareceram todos os homens e mulheres da aldeia e também os jovens que já tinham idade para compreender o que se passava.
Mandaram emissários às povoações dos arredores e a notícia espalhou-se.
No último Domingo do mês seguinte, todos mas mesmo todos, iriam ao palácio real. Tinham que mostrar quem mandava no reino. Não podiam deixar os filhos na miséria enquanto o reino fazia crescer a divida que não pagava.
Nesse Domingo o mundo espantou-se. Logo de manhã todos se organizaram para a viagem. Quem podia, levava mais um pedaço de pão ou uma tigela de sopa para acudir a quem não tinha que levar. As carroças levaram as crianças, os velhos e os doentes que podiam fazer a viagem. Nesse dia, houve almoço para todos. Todas as ruas, praças, passeios e jardins da cidade ficaram repletos de pessoas que não arredaram pé até um grupo ser recebido no palácio.
Nesse grupo estava o cobrador de impostos, o pastorAntónio, o lavrador José, um vendedor ambulante, um boticário, um ferreiro, um lenhador,uma padeira, uma tecelã, um ourives, um carpinteiro, um abade, um conde, e um cavaleiro.
Estes doze representantes do reino enfrentaram os governantes dispostos a mostrar-lhes quantos braços estavam do lado de fora do palácio. A dada altura a padeira exclamou exaltada:
- Então não se resolve nada? Já lhes conto! Não tenho farinha para fazer pão mas tenho ainda a minha grande pá!
E sem pensar duas vezes, levantou a pá e acertou com ela no traseiro do governante mais próximo, dando-lhe um valente piparote.
- Socorro! Fujam! Ela tem muita força! protestou o homem fujindo a sete pés.
-Sou padeira! Quem é o próximo? perguntou.
Não foi necessário repetir a pergunta. Num ápice todos correram para a saída e envergonhados, fugiram a correr, perante o povo que os apupava.
Dizem as más línguas que passaram a ter que trabalhar para comer. Coisas que se inventam, afinal "burro velho não aprende línguas" e como "quem faz um cesto, faz um cento" ninguém acreditava que tivessem passado a ter uma vida honesta.
A partir daí o dinheiro dos impostos passou a ser gerido com respeito e justiça. Á força de muito trabalho foi-se pagando a divida. Quem na corte tomava decisões passou a pensar também no povo, esse grupo que arduamente trabalhava, semana após semana, mas que finalmente tinha percebido que não bastava ter razão, era preciso lutar pelos direitos de todos os habitantes do reino.
A partir desse dia a linda princesa voltou a andar contente. Voltou a tratar dos doentinhos ganhando o suficiente para viver dignamente. O príncipe não cabia em si de contente. Tinha agora no palácio um principezinho bebé que crescia finalmente num reino justo com pessoas de novo felizes. A partir de então "palavra de rei pode sempre voltar a trás ".
......................
- E então? A história agora está melhor?
- Muito melhor! E acrescentou:
-Sou eu, avó?
- Quem?
- O bebé da história. Sei que sou eu! Tu gostas de histórias, não gostas avózinha?
- Gosto muito. E de bebés também. És lindo! Disse a avó sorrindo.
Nessa noite a avó lembrou-se, de em pequenina, ouvir a sua avó dizer: "Os males dos nossos avós, fazem-no eles, pagamo-los nós".
Esta ideia roubou-lhe o sono embora acreditasse que as gerações actuais acabariam por perceber que" Ofende os bons quem poupa os maus". Sim, eles saberiam resolver com sabedoria os grandes desafios que os esperavam. Com esta ideia adormeceu.
4/1/ 2013