II - A pardoca e o melro
Estava-se em Dezembro. Há muito que as parras tinham caído das videiras do bisavô Zé mas, ainda restavam alguns cachos maduros, um pouco passados, que os melros, todos os dias, petiscavam alegremente apesar do frio e do vento.
As cepas estavam bem agarradas à pérgula que o bisavô tinha construído ao longo do muro, desde o portão até à garagem, e os melros sabiam que a avó Ni não se incomodava com o seu apetite. Para dizer a verdade até gostava de ver a sua azáfama. Era um ir e vir que lhe fazia companhia e que observava, silenciosamente, através do vidro da janela por onde entrava a luz que iluminava o bastidor enquanto bordava todas as tardes.
O que ela já se tinha divertido com os melros e os pardais!
Lembrava-se bem do espanto que sentiu quando descobriu, em Março passado, bem na sua varanda da frente, um ninho de melros.
Nunca mais abriu a porta da rua. Para entrar e sair de casa, usava a porta da cozinha. Era mais seguro, não queria assustar aquele casal que velava três ovos dos quais, rapidamente, surgiram três crias pequeninas.
A avó estava preocupada pois, a 22 de Março, casava-se a sua filha e toda a família se reuniria na sua casa. Que pavor sentiriam os melrinhos.
Quanto mais pensava no assunto mais se convencia que Deus tinha um plano traçado e que deveria confiar Nele. Ainda assim, tratou de falar ao vizinho António que se lembrou de colocar alguns cardos abaixo e em redor do ninho, não fosse Deus ter algum plano para todos os "tarecos",que viviam nas casas da vizinhança.
De cima do diospireiro a pardoca observava a avó.
-Que tola! disse a pardoca aos filhos. -Que preocupada com bichos tão feios! Ainda se fossem netos dela!
Quando o pai melro voltou, disse-lhe a pardoca muito enciumada:
-Oh compadre, há-de contar-me porque vos protege tanto a velhota. Eu bem vejo os cuidados que vos dispensa.
-Deixa-a falar marido! recomendou a fêmea que já tinha regressado ao ninho.
- Vamos tratar da nossa vida, disse o pardal que não gostava de má vizinhança. E acrescentou: - Devia estar agradecida. Todos os dias a avó sacode as migalhinhas da toalha no mesmo sítio do quintal. Já pensou que pode ser por querer matar-nos a fome?
-Quem diria que um ser pequenino podia ser tão inteligente e observador.- Pensou a cadelinha Bessi, que tudo ouvia, aninhada no banco verde da varanda. Afinal, corações grandes e reconhecidos podem bater em peitos bem minúsculos.
A Bessi , que tinha todo o tempo para meditar, lembrou-se do padre-cura, aquele que se quis livrar de um melro pois, como explicou Guerra Junqueiro:
"Logo de manhã cedo
Começava a soltar, dentre o arvoredo,
Verdadeiras risadas de cristal.
E assim que o padre-cura abria a porta
Que dá para o passal,
Repicando umas finas ironias,
O melro; dentre a horta,
Dizia-lhe: "Bons dias!"
E o velho padre-cura
não gostava daquelas cortesias."
(...)
"O melro desprezava os exorcismos
Que o padre lhe dizia:
Cantava, assobiava alegremente;
Até que (...)
O velho disse um dia:
"Nada, já não tem jeito!, este ladrão
Dá cabo dos trigais!
Qual seria a razão
Por que Deus fez os melros e os pardais?!"
(...)
"E o melro entretanto,
Honesto como um santo,
Mal vinha no oriente
A madrugada clara,
Já ele andava jovial, inquieto,
Comendo alegremente, honradamente,
Todos os parasitas da seara
Desde a formiga ao mais pequeno insecto. " (...)
Os dias foram passando e as crias crescendo até que certa manhã a avó chamou baixinho:
-Bessi! -Vem espreitar! -Olha os meninos, vão começar a voar!
Com todo o cuidado, a Bessi viu como os pequeninos melros encorajados pelos pais, experimentaram o seu primeiro voo, indo pousar devagarinho na ramada das videiras. "Estavam salvos", pensou a Bessi. Afinal a sua futura dona só casaria daí a dois dias.
Quando chegaram os convivas nas suas vestes festivas e os risos e abraços invadiram a casa, ninguém deu pela família dos melros nem da dos pardais que, do alto do diospireiro, observavam a festa. Mas a Bessi bem ouviu um Ah! de espanto que a pardoca soltou quando viu, sair pelo braço do avô Zé a linda noiva, com seu longo véu, sapatinhos de cetim e corpinho perfumado com essência de jasmim. Até o Piruças, ao colo da sua América, estava nervoso admirando a sua amiga vestida de noiva e viu muito bem uma lágrima de alegria que rolou, teimosa, dos olhos da avó Ni.
Mais de dez anos se passaram depois deste dia feliz. Só então Deus brindou esta avó com o neto há tanto esperado.
A Bessi olha agora para esse bebé, com a mesma paciência e carinho a que nos habituou. 15/12/2012

