Recordações de família vistas de muito longe

 

1 - Quando umas cuequitas ganharam a guerra

Certa manhã, no Luso, Moxico,  por volta de 1960, o nosso Zé, desentendeu-se com as normas da casa que a mãe obrigava todos a cumprir e arreliado estabeleceu os seus limites e decisões declarando:

- Se é assim, então vou-me embora cá de casa, disse com a voz decidida de quem já tinha quase 3 anos.

- Vais nada, retorquiu a mãe, continuando a pedalar na máquina de costura.

O nosso amigo nem resposta deu. Levantou o rabo, que até então estava sentado na caixa de madeira castanha do pai e preparava-se para sair porta fora quando, antes de chegar á porta da cozinha, ouviu:

-Se vais, não leves o que é cá da casa!

- Da casa? O quê?

- Então quem te fez esses calções e essa camisa?

Sem pensar um segundo, mestre “Zé” tirou os calções e a camisa. Olhou por ele abaixo e levantando um pé de cada vez tirou a “botifarra” e a meia de cada um dos pés. Ficou só de cuecas de algodão branco e entendendo que já tinha feito o suficiente avançou decidido para a porta. Mal a tinha transposto eis que ouvimos a mãe dizer:

-Então e o resto? As cuecas?

O Zé estacou à porta e esteve a pensar uns momentos. Depois, bem depois rodou sobre os calcanhares e em voz baixinha exclamou:

- Assim não quero ir. E ficou parado à porta de olhos pregados no chão.

A mãe sorriu, pegou-lhe ao colo, voltou a vesti-lo abraçou-o e tudo terminou ali.

Este episódio foi sempre contado quando se queriam meter com ele e terminava sempre numa risota pegada.

Eu tenho mais cinco anos que ele, portanto teria uns sete ou oito e agora, tal como nesse dia, esta recordação é das poucas que me faz sentir embaraçada porque percebi que também eu não tinha nada, mesmo nada que lhe pudesse dar ou emprestar para o ajudar a levar a dele avante.

 

 Não que quisesse que o meu irmão saísse de casa, nada disso! Mas porque foi a primeira vez que vi alguém, tão pequeno, tentar enfrentar outro tão mais poderoso e a quem, sem dúvida alguma sempre amara, disposto a arriscar tudo, por uma convicção. Foi assim um David versus Golias em que ganharam umas simples cuecas de algodão. Que pena não ter tido coragem de as tirar e sair! Teria percebido que sem elas, ele era o verdadeiro tesouro e teria regressado em ombros, vitorioso. Se as crianças soubessem o poder que possuem no coração dos pais?

Enfim, recordações da avó Ni esbatidas pelo tempo? Quem sabe?

 

 

2 - Veio o leão e... Comeu-o

Vivíamos numa das várias  casas que formavam o bairro  do C.F.B. Não tenho a certeza, mas penso que estaríamos em Nova Lisboa. A entrada principal das  casas dava para uma rua não alcatroada, do outro lado da qual existia um pequeno matagal para onde todas as crianças estavam mais do que avisadas de que não deveriam entrar. Todas, sem excepção, sabiam que naquele matagal viviam grupos de leões esfomeadas que comiam fosse quem fosse que lá entrasse. Esta certeza era-nos contada muitas vezes e jamais admiti sequer, como hipótese, que não fosse verdade algo dito e garantido pelos adultos. Curiosamente vislumbrava-se um carreiro irregular que descia por um caminho mais curto, dando talvez directamente acesso à povoação e digo talvez pois da estrada de terra batida apenas se podia observar alguns metros deste carreiro pois logo a seguir desaparecia por serpentear por entre árvores frondosas.

Eu, era na época uma miúda com 4 ou 5 anos e sendo a Maria rapaz do bairro divertia-me, correndo, trepando às árvores, lançando papagaios de papel de seda (que ainda hoje tão bem sei fazer), etc. Era habitual ter os joelhos esfolados, levar todos os dias várias palmadas merecidas por chegar a casa com o bibe que devia ser alvo, sujo dos trambolhões.

 Fazer fisgas usando um pedaço de pneu e um pau bifurcado ou trotinetas com rolamentos e duas tábuas também me ajudavam a passar o tempo na brincadeira, a levar umas sovas monumentais enfim, a ter uma das infâncias mais felizes que nenhuma das meninas bem comportadas do meu tempo teve.

Ora acontece que, numa dessas manhãs de brincadeira vi o Sr. Veríssimo, vizinho, amigo da família, trabalhador na mesma companhia que o meu pai, sair fardado e apressado de casa, dirigir-se rapidamente ao carreiro proibido, entrar nele sem a mínima hesitação e caminhar até desaparecer da minha vista.

Até eu, que era tida como despreocupada e distraída, parei assustada e estarrecida com o desaparecimento do senhor.

Sem conseguir refazer-me fiquei ali especada de espanto quando, algum tempo depois, sai apressada  de casa, D. Rita, esposa do Sr. Veríssimo e pergunta:

- Ni, viste o Sr. Veríssimo?

- Vi, respondi eu, convicta de conhecer a dura verdade.

-Então para onde foi ele? Perguntou D. Rita ansiosa.

- Entrou na floresta, pelo carreiro há muito tempo, por isso, já veio um leão e comeu-o.

Para meu espanto, a suposta viúva desatou a rir, correu para minha casa a contar a novidade. Todos se riram com a provável morte do senhor e finalmente alguém me disse que ou era muito mentirosa ou tinha a mania de inventar histórias.

E foi assim que ganhei a fama da “ que imagina coisas” ou “tem uma imaginação muito fértil”.

 Antigamente, irritavam-me estes comentários quando eram contados no meio de galhofas. Depois, cresci e percebi que fiz muitas tolices, fui sempre castigada e portanto paguei a minha divida pelas maroteiras que fiz. Diverti-me à brava, e claro que o Sr. Veríssimo não foi comido pelo leão mas devia ter sido, pois pertencia ao grupo dos que “ imaginaram coisas” ou “tinham uma imaginação muito fértil, isto é, mentiam às crianças”.

Assim dos 4 filhos que éramos, dois brincámos o mais que podíamos, apanhávamos as respectivas sovas. Demos que fazer à nossa pobre mãe que só queria que estudássemos e tinha que o repetir vinte vezes por dia. Devemos-lhe a nossa profissão que nos garantiu o nosso futuro. Mas não ficaram traumas de infância, nem de violência doméstica e agora que já passei dos sessenta e que ninguém me ouve gosto de pensar " Abençoado tempo que passei a brincar, a ler livros de histórias enquanto devia estar a estudar". Aprendi tanto enquanto brinquei que se não fossem as arrelias que dei à mãe agradecia a Deus ter-me dado a sabedoria de brincar. Há lá coisa melhor para fazer na vida!

                                                                          

 

3- A história dos cabritinhos

 

15/11/2013               10,45 h

A avó Nini estava a contar uma história:

.... - E depois a mãe dos cabritinhos disse: - A mamã vai sair, não abram a porta a ninguém! (O Daniel , sentado na cama continuava com um carrinho em cada mão dizendo baixinho: vrrruuum,vrrruumm).
Depois - dizia a avó - ouviram assim: Truz,truz.
-Quem é? perguntou o mémé pequenino.
- Sou eu, a mamã, disse o...
O Daniel levantou de repente a cabeça e interrompeu. -Papá? - Papá?
A avó cotinuou:
Disse o lobinho. - Abre a porta meu filhinho.
 O Daniel abanou a cabeça para a esquerda e para a direita e disse: - Na, papá? papá? Largou os carrinhos, agarrou-se ao pescoço da avó e disse: Papá!
Pronto, a história mudou e ficou assim:
- O papá entrou e deu muitos beijinhos ao Daniel.
 E a avó Nini deu beijinhos na barriga, no pescoço etc. Daqueles que o fazem rir a bom rir.
-Queres mais beijinhos do papá?
- Papá- disse o Daniel. (nova dose de beijinhos)
-Queres beijinhos da mamã?
-Mamã- disse o Daniel.( Outra dose de beijocas)

A assim a avó Nini faz de conta que é o papá, mamã, avô Zé, avó Nela, carrinhos, barquinhos patinhos e por aí fora... e tem que rever as regras do discurso directo para vos contar o que a faz rir a bom rir durante o dia.

                                                                      

4 - O nosso Zé, o Bobi e ... o cozinheiro

No passado, tempos houve que a  um outro Zé, o filho, bastava calçar as "botifarras" para partir com o pai Zé para uma qualquer aventura. Nesse tempo havia pombas brancas e cinzentas no pombal e um Bobi, companheiro inseparável das idas à praia todos os Domingos.

Numa bela manhã, mestre Zé, filho, equipado com as botifarras a prometer aventura e munido dos seus dois ou três anos saiu da beira da mãe e escada abaixo foi para o quintal ter com o pai que tratava das pombas. Mas não sendo muito persistente nas suas decisões resolveu sair portão fora e explorar a rua voltando à esquerda e desaparecendo da vista. Poucos minutos depois a mãe assoma à porta da cozinha exclamando: - Zé, manda o miúdo para cima!

Não foi preciso mais que uma troca de olhares para ambos se precipitarem para a saída olhando ansiosos em todas as direcções. Eis senão quando avistam um alto e gorducho cozinheiro negro equipado de branco e com o indispensável barrete da profissão que ao longe caminhava na direcção da nossa casa com o pequeno Zé ao colo e em frente a ambos caminhava o pequeno Bobi.

-Deixa ver o que ele vai fazer com o garoto, disse meu pai espantado. Quando se aproximaram o suficiente o pai interpelou:

- Onde vai com esse menino? Resposta imediata do cozinheiro:

-Não sei, a senhora viu o menino a brincar na rua e o cão sempre junto, então ela chamou: -Barnabé, pega nesse menino e vai levá-lo a casa dele.

-Onde senhora? Depois a senhora disse; - Não sei , mas esse menino é desse cão, por isso pega no bébé e vai onde o cão fôr, e eu estou a ir. No mesmo instante o Bobi entra sem cerimónia no nosso portão, o cozinheiro pousa o Zé que corre para a mãe. Diz o cozinheiro, todo contente:

-Está a ver patrão, este menino é deste cão e desta casa. E partiu.

Nunca foi esquecido este cozinheiro nem deixámos de ficar agradecidos a ele e ao Bobi. Ambos nos devolveram o nosso Zé.


 

                                                                           

 

 

 

 

5-   O MEU PAI

 

O meu Pai

o nosso Pai e nosso Avô

era um homem íntegro e vertical.

Homem sério, inteiro, leal e frontal,

era um lutador!

Tinha na vida dois valores fundamentais: Honra e Família!

Por eles, foi sempre capaz dos maiores sacrifícios.

 

O meu Pai

o nosso Pai e nosso Avô

era um Mestre, exigente de qualidade, estudioso, dedicado, trabalhador incansável.

Exigiu sempre primeiro de si próprio!

 

O meu Pai

o nosso Pai e nosso Avô

era aquele que estava sempre ali, onde era preciso!

Para ouvir, para incentivar, para embalar para mimar, para ajudar.

 

O meu Pai

o nosso Pai e nosso Avô

era o Companheiro de todas as brincadeiras

que nos ensinou a nadar, a pescar,

a cozinhar, a jardinar

e encantava os netos com a "caça às rapozecas"!

 

O meu Pai

o nosso Pai e nosso Avô

era o amigo terno e carinhoso

que nas manhãs de Domingo ou antes de nos adormecer

encantava com longas, muito longas e pormenorizadas histórias

cheias de príncipes e princesas, gigantes e anões, fadas boas e

animais de todas as cores e falas!

E quando a inspiração falhava

encantava-nos com trechos de Júlio Dinis, Aquilino Ribeiro ou de Guerra Junqueiro,

citados de cor

ou simplesmente com a interminável" história do homem das calças azuis"...

 

O meu Pai

o nosso Pai e nosso Avô

era um Homem Grande e um Homem Bom!

Vai fazer-nos muita falta.

          Faty 24/1/2010