Eu, a pedrinha            

 

 

-O sol começou a aquecer-me de manhãzinha e logo a lagartixa Lili se esparramou sobre mim para aquecer o corpito. Não me importei, aprecio a sua companhia apesar de achar que ela nem dá conta que eu existo.

-Hoje a danadinha, que parece tão lenta, de supetão, abocanhou a pobre aranha Pretita que vivia aqui no jardim. Não teve a mínima hipótese, foi apanhada pela cabeça e serviu de almoço à Lili que não voltou a pensar no assunto. Fechou os olhos, dormiu e só saiu de cima de mim quando o sol, seguindo o seu curso foi aquecer outras paragens.

-Eu não tenho a mesma sorte, sou uma pedra que em tempos pertenci a uma calçada. Como gostava eu do lugar onde me colocaram! Eu era importante pois era indispensável no desenho da Calçada Portuguesa, pensada por um artista e executada por calceteiros igualmente artistas. Eu era um cubo quase perfeito.  Um dia uma das pedras, minha vizinha, soltou-se e quem passou deu-lhe um pontapé que a levou para longe. Depois disso soltamo-nos umas atrás das outras. Antes que alguém nos voltasse a colocar no nosso lugar um garoto apanhou-me e foi comigo até casa a tentar acertar em quantos pombos via. Fui ficando lascada e perdendo pedacitos e a forma elegante de que tanto me orgulhava. Quando perdeu o interesse por eles atirou-me para dentro deste quintal. O quintal da avó Ni e desde então cá vivo. O que eu tenho visto daqui!

-Ontem por exemplo, chovia miudinho, anoitecia e vi aquela mulher magra agarrada ao xaile que lhe cobria a cabeça e os ombros ossudos. O vento tentava arrancar-lhe o saco de plástico que agarrava com todas as suas forças. Tentando equilibrar todos os seus parcos haveres tocou a campainha da casa em frente e enquanto esperava a chuva molhou-lhe os sapatos meias e saia. Depois de alguma espera tocou ao lado. Desta vez abriram uma frincha da porta e a pobre teve que gritar para se fazer ouvir:

-Compre-me umas meias, feitas à mão com 5 agulhas, por favor! Implorou e acrescentou – são de lã caseira, quentinhas.

- Não preciso e zás porta fechada. Tudo se repetiu porta após porta.

Pois ela volta, sempre ao anoitecer, semana após semana, continua magra e trémula. Não perde contudo o sorriso de esperança que a mantém viva.

- Que pena não reparar em mim. Até quando suportará o tempo agreste e as recusas cada vez mais frequentes dos moradores da rua? Contudo não desiste! É como se continuar a fizesse sentir útil e viva.

  O jardim e a rua não são lugares monótonos, pelo contrário. Como eu tenho tempo para ver e pensar divirto-me e muito. Além disso, de vez em quando alguém tropeça em mim e sou arremessada um pouco para o lado, isso muda toda a perspectiva. Durante algum tempo tenho um mundo novo para explorar, e o tempo todo para pensar. 29/3/2013   01:09

Para dizer a verdade toda convém registar que este texto foi inspirado num tema, que na altura achei estúpido, já que, há muitos, muitos anos um professor de Português o indicou para T.P.C. de uma das minhas irmãs, suponho que da mais nova. A  única certeza que tenho é que o tema era "Se eu fosse uma pedra da calçada!"  Como resolveu ela o trabalho não me recordo, mas deve ter sido de forma brilhante pois durante muito tempo foi tema de conversa em nossa casa com o orgulho que todos sentimos como se fossem nossos os êxitos dos nossos familiares.